TESTEMUNHAS DO SOFRIMENTO CAUSADO PELA CAÇA FURTIVA
Mulheres vivem do pão que o diabo do rinoceronte amassou
Esta reportagem traz histórias de duas mulheres do distrito de Magude, que têm em comum o facto de terem ficado sem os respectivos maridos, por razões diferentes, mas ambas suscitadas pela prática da caça furtiva de rinocerontes, na vizinha África do Sul. Trata-se de Sónia Umbisse e Isaura Inosso Chiburo, de 28 e 36 anos de idade, respectivamente. As jovens mulheres, que ficaram com a responsabilidade de cuidar sozinhas das famílias, dizem ser exemplos do sofrimento derivado da prática daquele tipo legal de crime transfronteiriço. Aliás, desaconselham a quem ainda pretenda seguir o caminho da caça furtiva, pois o resultado final é a desgraça. De forma tácita, as duas mulheres fazem notar que estão, juntamente com seus filhos, a viver do pão que o diabo dos cornos de rinocerontes amassou.
Texto e fotografias: Serôdio Towo
Sónia Umbisse é mãe de três filhos de 10, 8 e 6 anos de idade. É a primeira das duas interlocutoras com quem falámos, no bairro Ricatlhane, arredores da vila sede do distrito de Magude, na província de Maputo. Conformada com a sua situação de viúva, Sónia começou por prestar glória à Deus pela saúde que ainda proporciona aos pobres órfãos de pais. De seguida, desatou a contar detalhes da sua vida, que tem sido de profundo sofrimento, desde que seu marido – Dário Narcy – foi morto, presumivelmente nas matas de Bush, na região de Gazankulu, na vizinha África do Sul.
Com alguma dor estampada no rosto, esforça-se para falar e conta que a última vez que falou com o seu marido foi ao telefone, por volta das 19:00 horas do dia 7 de Agosto de 2017. Explica que a conversa não durou muito. Ele ligara simplesmente para informar à mulher que já tinha chegado ao destino e que estava a entrar para as matas. Essas, segundo conta Sónia Umbisse, foram as únicas e últimas palavras que ouviu do seu marido, que havia saído de casa no dia anterior, por volta das 18:00 horas.
Sónia ainda guarda no seu íntimo muita dor pela morte do seu querido marido, com quem havia iniciado projectos ambiciosos, entre eles a construção de uma família. A mulher tem a sensação de que a tragédia podia ter sido evitada se o marido não tivesse sido desviado do futebol, uma modalidade que tanto adorava praticar.
“Meu marido não estava aqui em casa. Havia saído para jogar futebol, que tanto adorava. Onde jogava era tão distante que não lhe permitia regressar no mesmo dia. Ele saía na tarde de sexta-feira e hospedava-se na casa dos meus falecidos pais. No dia seguinte, sábado, jogava, e só regressava no domingo. A última vez, apareceu alguém, por sinal um residente daqui da zona, e perguntou por ele, dizendo que precisava dele com alguma urgência. Cometi o erro de explicar para onde ele havia se deslocado, porque de seguida, o fulano entrou no seu 4x4 e seguiu-lhe”, explica, amargurada, a viúva de Dário Narcy.
Horas depois, continua a mulher, “já no final do dia, meu marido chega em casa na companhia do fulano, o que significa que não jogou futebol naquele sábado. Essa foi a última vez que o vi, porque se despediu e partiu para essa viagem, que acabou sendo definitiva e fatal”.
Uma morte omitida durante uma semana
A dor da alma vai longe, pois, segundo narra a viúva, mesmo sabendo do sucedido, o “boss” que procurou Dário Narcy onde estava a jogar para o levar à caça furtiva já não teve o cuidado de voltar e informar à família do finado sobre o trágico acontecimento. Diz Sónia Umbisse que, depois do silêncio profundo, e passados dias sem que houvesse sinal do marido, os tios dela, por sinal os únicos parentes que o casal tinha, dirigiram-se à casa do referido “boss”, a fim de exigir alguma satisfação, mas sem sucesso.
Lembra-se ainda a viúva que o tal “boss”, mesmo sabendo que Dário Narcy estava morto e seu corpo recolhido à morgue, omitiu isto à família do finado e ainda a levou para as matas, como se lá fosse procurar alguém cujo paradeiro desconhecia.
“A bala atingiu-lhe na nuca e não saiu”
Segundo Sónia Umbisse, a esperança de poder encontrar seu marido com vida ia desvanecendo cada vez que o tempo passava. Foi necessário fazer fortes ameaças ao “boss” para que este, ao oitavo dia, e na companhia de outros pares seus, também mandantes, se dirigisse à casa do finado para confessar a verdade, prometendo que, em dois dias, o corpo chegaria à casa para o funeral, e assim aconteceu.
Ainda no seu doloroso depoimento, Sónia lembra-se e conta que seu falecido marido foi alvejado na nuca e que a bala não chegou a sair. Explica ainda que o grupo que levou o corpo do finado à casa fez uma insignificante contribuição monetária, que serviu apenas para as cerimónias fúnebres. Desde essa altura até hoje, o sofrimento predomina na casa dela.
Sónia vive se reinventando para sustentar seus três filhos e um sobrinho do finado, também menor de idade. Depois do luto, começou a trabalhar como empregada doméstica e recebia 1500 meticais como salário. Mas, por ser pouco dinheiro, teve que abandonar esse trabalho, e actualmente dedica-se, em tempos de chuva, a biscates nas machambas e recebe de acordo com as metas alcançadas.
Seu marido morre na quarta missão operativa de caça
Entretanto, respondendo a uma das nossas perguntas, a mulher disse que aquela era a quarta vez que seu marido participava em operações de caça furtiva, mas não com o mesmo “boss”. Clarifica ainda que, para ela, o dinheiro que seu marido recebia não era tanto a ponto de justificar que arriscasse a vida.
Conta que o valor mais elevado que seu marido recebeu nas anteriores operações foi de 300 mil meticais. Numa outra, em que foi amplamente aldrabado, recebeu apenas 65 mil meticais, alegadamente porque os quilogramas dos cornos eram poucos.
Perante a nossa insistência, Sónia ainda revelou que sempre preferiu que seu marido continuasse a praticar a sua profissão de ajudante de pedreiro, porque eram frequentes os relatos de baleamento de outros jovens da zona, assim como casos de detenção e condenação a muitos anos de prisão.
Para ela, antes valia sofrer ao invés de conhecer a morte ou a prisão. Seu marido, porém, respondia sempre que só precisava acertar uma única vez, para concluir a montagem das portas e janelas na casa que estavam a construir. Este é um sonho que não foi alcançado. Dário Narcy morreu desgraçado, deixando, tal como nos referimos, três filhos menores, que, graças à atenção da mãe, estudam e são a esperança para o futuro de Sónia Umbisse.
Caça furtiva leva homem a 18 anos de prisão
De 36 anos de idade, Isaura Inosso Chiburo também é natural e residente do bairro Ricatlhane em Magude. Conta-nos a sua história de separação forçada do seu marido, por conta da prisão deste. Isaura explica que seu marido – Silva Azaria Tivane – foi preso em 2014, na África do Sul, quando se encontrava em mais uma das várias operações de caça furtiva, que efectuava na zona de Bush.
Teve sorte diferente, ou seja, escapou da morte, mas a implacável Justiça sul-africana decidiu condená-lo ao cumprimento de uma pena de 18 anos de prisão. À semelhança de Sónia Umbisse, Isaura também diz que a caça furtiva apenas provocou desgraça no seio da sua família.
“Vivemos num ambiente de verdadeiro sofrimento, devido à ausência do homem, que é o pilar de uma família. Desde 2014, ano em que meu marido foi preso, a vida aqui em casa passou a ser um martírio. Custa colocar pão à mesa para alimentar os quatro filhos que temos”, lamenta Isaura.
Segundo conta, e com perceptível nostalgia, a última vez que viu seu marido foi na rua. Ele acabava de sair de casa e seguia todo apressado, porque ia atrasado à boleia que o levaria à zona operacional da caça furtiva. Ela, por sua vez, regressava da escola, onde ia matricular a sua última filha, que ia frequentar nesse mesmo ano a 1.ª classe. A rapariga está hoje na 9.ª classe.
Embora feliz por saber que seu marido está vivo e pelo facto de poder receber chamadas telefónicas dele duas a três ocasiões por ano, a mulher equipara a prolongada ausência à morte. É que, para Isaura, não existe grande diferença entre quem morreu e quem está preso por longos anos em país alheio.
Em resposta a uma das nossas perguntas, Isaura explica que tomou conhecimento da prisão do seu marido dois meses depois de este ter saído de casa. “Ele ligou para mim a partir da cadeia. Não disse muita coisa. Informou-me apenas que estava vivo, mas preso, numa cadeia, em Barberton, porque tinham sido surpreendidos na posse de um corno de rinoceronte, nas matas, e que só não foram mortos porque logo se renderam à Polícia, levantando as mãos”.
Apesar do desespero, Isaura sabe que a esperança é a última a morrer. Tem fé no regresso do marido ao convívio familiar e não esconde a ansiedade. Acredita que a sua chegada poderá marcar o reinício da vida, que está estagnada ou destruída desde que ele se ausentou.
Nota curiosa é que, tal como sucede com Sónia Umbisse, a nossa primeira entrevistada nesta reportagem, Isaura também é uma mulher totalmente solitária e sem ajuda familiar, porque é órfã de pais. O seu marido, por sua vez, não tem irmãos. Quando é assim, explica Isaura, o sofrimento agudiza-se.
A mulher aproveita para deixar um conselho aos jovens de Magude, e não só, para que se distanciem da caça furtiva, assegurando que apenas traz prejuízos enormes às famílias.
*Reportagem extraída da edição 480 do Dossiers & Factos
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